Aqueles familiarizados com o trabalho do célebre escritor norte-americano William S. Burroughs, ícone da geração beat que já teve sua obra-prima Almoço Nu adaptada por David Cronenberg, provavelmente reagiram com curiosidade às notícias de que Luca Guadagnino rodaria um filme inspirado em Queer. O livro é espinhoso e mexe com sensibilidades algo complicadas, mesmo para 2024: o autor redigiu o manuscrito original deste roman à clef pouco após matar sua esposa de maneira supostamente acidental e trocar sua pátria-mãe pelo México, passando a se relacionar com jovens rapazes, vivendo uma paixão tórrida, viajando a América do Sul em busca da Ayahuasca e colocando tudo isso no papel. O desafio maior talvez estivesse, mesmo, em transpor à tela um texto de Burroughs, conhecido por sua escrita elíptica, múltipla, experimental no real sentido da palavra. Queer é um de seus livros mais acessíveis em matéria de linguagem, ainda que definitivamente não soe “cinematográfico”, lato sensu, a um leitor de primeira viagem. Mas Guadagnino dobrou a aposta e encarou o desafio neste que é seu segundo filme lançado em 2024 (após, claro, Rivais – sobre o qual já escrevemos por aqui) e que chegou ao circuito comercial brasileiro na semana passada.
Coube a Daniel Craig a missão de viver Bill Lee, o alter-ego de Burroughs que flana pelas ruas da Cidade do México tomando pileques de tequila e se enveredando pela cena gay local. Uma escolha, no mínimo, interessante; Craig ficou conhecido por ter sido o primeiro ator a questionar e tensionar os paradigmáticos signos da masculinidade heterossexual no personagem de James Bond, e desde que se libertou destes grilhões simbólicos (na turnê de divulgação e no próprio texto fílmico de Spectre, fita do espião inglês lançada em 2012) vem aparecendo por aí em papéis bastante diversos, que brincam com sua imagem de galã loiro embrutecido e, por vezes, a subvertem (da farofada soderberghiana Logan Lucky, de 2017, ao policial cômico Knives Out, de 2019). A adaptação tenta facilitar a tarefa do espectador em se relacionar com o personagem ao cautelosamente omitir o assassinato de sua esposa, uma informação extrafílmica que é acessada pelos espectadores familiares a Burroughs através de pistas e evocações visuais que o diretor vai inserindo pontualmente. Durante boa parte do primeiro segmento do longa (que é dividido em capítulos; Guadagnino não abriu mão da estrutura livresca), vemos Lee vagueando entre os bares trajando seu terno de linho branco, se auto-intitulando queer, compartilhando seu cotidiano com poucos amigos e tentando seduzir rapazes. Ainda que não seja exatamente anacrônica, o estilo de indumentária escolhido pelo figurino do longa parece almejar alguma coisa de atemporal, por assim dizer; é um filme no qual os anacronismos talvez se deem mais nos diálogos que a trilha sonora estabelece com canções de outros tempos adentrando uma narrativa que é quase toda ambientada ao longo da década de 1950. Guadagnino não chega a fazer isso de forma tão espalhafatosa quando um Baz Luhrmann, estando mais próximo de uma Sofia Coppola. O Lee que conhecemos a princípio é um sujeito majoritariamente silencioso, andando pra lá e pra cá com uma expressão fechada e introspectiva (que a Craig, sai naturalmente), que observa rinhas de galo sendo encampadas pelos mexicanos nas esquinas enquanto a trilha sonora da fita nos aclimatiza com Come as you are, do Nirvana. Veremos ele se abrindo, se expondo e mudando seu comportamento na medida em que o filme progride.
Para recriar uma Cidade do México dos anos 1950, o cineasta optou por uma escolha que provou-se um dos pontos altos de Queer: rodar (quase) tudo na Cinecittà. O tradicional estúdio da cidade de Roma, outrora usado por Fellini, Visconti, Rossellini e outros bambas do cinema italiano, serve como palco para a construção de uma cidade que é quase que assumidamente cenográfica, sobre a qual Guadagnino pode exercer total controle estético sobre a criação de seu mundo. É uma cidade árida, vazia, com poucas pessoas circulando; os expatriados norte-americanos se destacam em meio à paisagem, assumindo o papel que cabe tão bem aos representantes do Tio Sam, de verem a si próprios como os protagonistas do mundo em meio à terra estrangeira. Lee está intimamente imerso na comunidade de cidadãos dos EUA que ali habita; os poucos mexicanos aos quais costuma se dirigir são os taberneiros e os homens que tenta enlaçar. Quando seu objeto de desejo passa a ser o jovem Gene Allerton, expatriado que está fazendo suas primeiras e discretas incursões no microcosmo queer da Cidade do México, sua atenção a qualquer outra coisa ou pessoa se dissipa de forma praticamente completa.
A relação entre os dois se estabelece de forma bem clara; o mais velho aproxima-se tentando estabelecer um contato amistoso que pode resultar em algo mais, enquanto o mais novo logo saca o jogo de sedução e vai cozinhando o outro em banho-maria, ora cedendo, ora fugindo. Lee torna-se um obsessivo, em uma fixação por Gene que ultrapassa meramente o prazer do qual desfrutam na cama. Busca incessantemente, mesmo, aquele companheirismo que realmente derrube por terra sua solidão, em uma relação que é muito mais de dependência do que de mera satisfação sexual. Isso naturalmente repele o garotão, que é desapegado, de espírito livre e, pelo menos antes de se inserir de vez na cena gay da capital mexicana, chega mesmo a andar pra lá e pra cá com uma moça a tiracolo.
Guadagnino segue forte naqueles que costumam ser os momentos que melhor arquiteta: as sequências que retratam a intimidade, com os personagens isolados entre quatro paredes. Talvez o momento mais emblemático de Rivais, ainda fresco na cabeça, seja aquele em que os três protagonistas fazem um pingue-pongue com suas dinâmicas de atração dentro do mesmo dormitório. Aqui, por exemplo, isso se dá quando Lee finalmente consegue trazer Gene a seu apartamento; é quando vemos os dois encenando uma dinâmica extremamente… (por falta de adjetivo melhor) humana. Realmente sentimos sendo estabelecida uma intimidade palpável entre dois amantes, onde o sexo é apenas um dos fatores que estão em jogo, tanto quanto, por exemplo, o ato de correr à privada após encher o caneco com uma bebida de origem duvidosa. Nesse quarto de hotel de arquitetura extremamente impessoal, Gene encontra vestígios da personalidade de Lee, e vamos gradualmente descobrindo quem é, realmente, o homem do terno de linho: uma profusão de livros, resmas de papel e uma máquina de escrever dão a dica de que ele seria um escritor; uma colher escurecida pelo fogo jogada em um canto já dá a letra a quem conhece o histórico de Burroughs, o autor, com o vício em heroína. Guadagnino chega a orquestrar uma sequência nada apressada, na qual mostra seu personagem principal dispondo sobre a mesa do quarto os itens necessários para a preparação de um pico de heroína. A partir daí, o vício adentra de vez a trama e a relação entre o casal que vem se estabelecendo.
Queer acaba se tornando, também, um filme sobre a dependência química e a busca por uma outra relação com substâncias: o interesse de Lee pelas propriedades ascéticas da Ayahuasca, através das quais almeja atingir a “telepatia” (ou, melhor dizendo, uma maneira de ter seu contato com Gene firmado pela cumplicidade de duas mentes sem que seja preciso o intermédio das palavras ou dos toques), leva a dupla a embarcar em uma viagem por uma série de países sulamericanos. Desde o princípio, o diretor põe em tela as manifestações do desejo do protagonista em entregar-se sem ressalvas ao amor através de um recurso visual que funciona muito bem, que é o da sobreposição. Se, em dada sequência, os dois assistem a um filme no cinema, logo surge uma mão espectral de Lee, que toca a Gene de forma estritamente imaginária, ideal, antes de desaparecer em fade. É o tipo de truque que, hoje em dia, nada tem de novo, mas vai sendo reiterado durante toda a minutagem da fita até ser efetivamente usada de forma mais inventiva nos momentos finais. E é significativo que, quando o uso da Ayahuasca realmente é levado a cabo, a representação desse contato entre Lee e Gene é extremamente física; há lampejos em que um parece estar adentrando o outro de forma subcutânea, fundindo-se. O tão almejado, tão sonhado contato psíquico é irremediavelmente corpóreo, pelo menos na maneira como chega ao espectador.
Um dos maiores problemas de Queer está em seu ritmo. Se, como mencionamos anteriormente, é um longa pensado de forma estruturalmente livresca (filmes divididos em capítulos nunca saíram de moda, mas em alguns isso funciona melhor do que em outros), ele definitivamente pena em tentar alcançar um ritmo de narrativa literária. O primeiro “capítulo” da fita, todo ambientado na Cidade do México da Cinecittà, funciona em sua construção atmosférica e no estabelecimento das tensões. Todos os capítulos subsequentes parecem um tanto deslocados depois disso, até por seu andamento soar particularmente apressado quando comparado ao da parcela inicial. Quase tudo que vem a partir do segundo capítulo parece um outro filme, de formas que podem ou não ser intencionais. Digamos que, por exemplo, o seja em matéria de figurino: após um longo período assistindo a Daniel Craig andando pra lá e pra cá de paletó e chapéu brancos, subitamente o vemos completamente de preto, colarinho fechado e trajando um pesado sobretudo. A mudança visual do personagem é claramente premeditada, e reflete seu estado de corpo e de espírito: o vemos adoecido, e logo percebemos (ou descobrimos, quando a narrativa finalmente põe as cartas na mesa) que ele está sofrendo com crises de abstinência. A partir daí se desenvolve uma jornada que é rápida demais para que nos importemos com ela, na qual os personagens taxiam de ônibus ou avião de um lugar ao outro sem que sequer tenhamos uma noção de onde eles estão ou de para onde vão que saia da mera citação nominal. Não curtimos a viagem, não nos ambientamos nos outros países e não sentimos os personagens desfrutando de suas particularidades; os três momentos em que Guadagnino permite um respiro são quando: 1) Lee aborda um mercador tentando descobrir onde comprar cocaína ou heroína em uma cidade X; 2) Lee e Gene tentam enganar um médico de uma cidade Y para que ele prescreva uma receita de opióides ao doente; 3) eles chegam a uma cidade equatoriana onde Lee espera finalmente conseguir a Ayahuasca, mas é repreendido por seu entusiasmo desrespeitoso e instruído a adentrar a mata fechada para procurar uma botânica americana. Talvez em um esforço pragmático de reorientar o filme à questão do vício na heroína e no sonho da libertação mental/afetiva pela Ayahuasca, Guadagnino se esquece de dar alguma atenção a… bom, todo o resto. Nesse quinhão, mesmo a relação entre o casal parece jogada, desdobramento dos dias na Cidade do México no qual o diretor conta com nossa familiaridade para ter uma desculpa de não desenvolver dramaticamente aqueles personagens para além das rusgas entre os dois.
Quando o filme estaciona na cabana da botânica, então, aí realmente Guadagnino perde a mão. A essa altura, o Queer que acompanhamos tem pouco a ver com aquele dos primeiros minutos de projeção — e não de um jeito bom. A encenação passa a se preocupar em retratar a personagem da botânica como algo entre ameaça e alívio cômico, com cabelão ensebado e dentes sujos; em mostrar Gene interagindo com um bicho-preguiça que mora dentro de casa; em construir uma relação entre os dois forasteiros com o casal de botânicos que vive na mata que jamais parece orgânica ou realmente interessante. Descascamos esse abacaxi para chegar no grande momento do filme, e aí há, realmente, alguma recompensa, em uma sequência visualmente bem-resolvida (e na qual Queer melhor utiliza os corpos estatuescos de seus atores), com o contato carnal sobre o qual já discorremos aqui. Depois disso, Guadagnino parece ter um problema sério para finalizar o filme, sem saber muito bem como fazê-lo: e cada um dos três ou quatro finais que ele arranja parece ser mais deslocado ou redundante que o anterior.
É nessa seara de costurar uma porção de desfechos que o diretor mais se embanana. No epílogo do epílogo, e no epílogo do epílogo do epílogo, tenta fazer, por meio de seus jogos de cena, algo que se relacione com o experimentalismo literário de Burroughs. Não consegue: se tanto, chega perto de pôr em tela algo que parece uma paródia malsucedida das últimas sequências do astronauta Dave em 2001: Uma Odisseia no Espaço. Definitivamente não é o tipo de coisa que combina com uma adaptação de William Burroughs — mas, sendo um autor desse quilate, sempre vale o esforço. Uma coisa que podemos tirar de Queer e do Suspiria de 2018 (um filme denso e sobrecarregado, mas um tanto mais efetivo em suas propostas do que a fita sobre a qual escrevemos agora) é que talvez Guadagnino se dê melhor com projetos menos ambiciosos.
QUEER, dir. Luca Guadagnino.
Sinopse: Lee é um expatriado americano vive na Cidade do México após ser dispensado da Marinha entre estudantes universitários americanos e donos de bares. Em meio à vida boêmia da cidade, Lee conhece Allerton, um jovem por quem desenvolve uma intensa paixão.
Hoje nos cinemas.
Duração: 137 minutos. Assista ao trailer.
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