RECORTES CRITICA: Pobres Criaturas (2023)
Crítica do sci-fi surrealista indicado a categoria de Melhor Filme no Oscar 2024, por Igor Nolasco.
Quando os filmes anglófonos do realizador grego Yorgos Lanthimos começaram a fazer barulho (com O Lagosta e O Sacrifício do Cervo Sagrado), não levou muito tempo para que o cineasta passasse a cultivar detratores e admiradores na mesma medida, com ambos os grupos mostrando-se vocalmente numerosos. Incensados por festivais e premiações, seus longas atuais vem crescendo em escala. A Favorita já mostrava-se fáustico em sua ambientação palaciana) e em visibilidade. Nesse sentido, é curioso ver seu novo trabalho sendo objeto de discussões que operam no mesmo piso argumentativo e temático sobre o qual, por exemplo, a maior parte dos títulos concorrentes ao Oscar são analisados. Quando pensadas extra-contextualmente, as obras de Lanthimos jamais parecem almejar atingir o perfil do “filme de premiação” convencional, e carecem das preocupações usuais desse tipo de produção. Tentemos discorrer sobre Pobres Criaturas, portanto, fora dessas caixas.
Após cometer suicídio, uma dama da sociedade inglesa tem seu corpo apanhado por um cientista, que a traz de volta à vida transplantando para seu crânio o cérebro do feto que ela carregava no ventre. Batizada como Bella, a mulher renasce com uma mente infante em um corpo adulto, e comporta-se como tal enquanto se desenvolve gradualmente. Superprotegida por seu “criador”, ela atira-se na primeira oportunidade de ver o mundo lá fora e embarca em uma sequência de aventuras e desventuras que pavimentam o caminho para o florescer de sua maturidade. Um pupilo do cientista, que eventualmente torna-se noivo de Bella, serve como “orelha” e se encaixa no ponto de vista do espectador durante o início da projeção, mas eventualmente é deixado de lado (e assim permanece durante boa parte do miolo do filme) enquanto a trama toma cursos mais interessantes.
Visualmente, é de longe o trabalho mais interessante do diretor. Em A Favorita, orçamentariamente mais substancial que seus longas anteriores, já se ensaiava um uso mais criativo da lente fisheye e uma exploração estanque dos espaços que aqui chega a lugares diferenciados, uma vez que a ambientação de Pobres Criaturas envereda-se pelo lúdico e, por vezes, quase pelo fantástico (evoca sobretudo pintores como Hieronymus Bosch). A distinção é clara: as primeiras sequências, em P&B, ainda dão alguma sobriedade à vida enclausurada de Bella no casarão do cientista que a “criou”; a partir do momento que ela parte para suas viagens mundo afora, o restante da projeção é encharcado de cores vivas, quase que como a transição ao technicolor em O Mágico de Oz.
Os elementos básicos de Pobres Criaturas evocam sobretudo dois referenciais (para além do romance do escritor escocês Alasdair Gray, do qual o filme é adaptação direta): o arco narrativo (e algo moral) tradicional de uma fábula clássica e os motivos temáticos e arquetípicos de Frankenstein, ou o Moderno Prometeu, de Mary Shelley. Lanthimos e seus atores (todos muito bons) lidam com as personagens à moda semibrechtiana, levando a cabo o que já era ensaiado em produções anteriores do diretor (sobretudo em A Favorita) enquanto abrem mão de uma pretensa naturalidade e encarnam arquétipos muito bem definidos, da caftina maternal que, ainda assim, se aproveita das moças que vivem sob seu teto aos viajantes cínicos e arrotadores de filosofia de boteco que Bella encontra em suas viagens. Quem se destaca em meio ao conjunto é, naturalmente, a protagonista vivida por Emma Stone – a princípio, entregue aos maneirismos e vocábulos infantis, que refletem na postura física da atriz e em sua locomoção ao andar; gestos e fala refinam-se de maneira a princípio imperceptível, mas logo sentida, conforme a personagem avança em seu autodescobrimento (até mesmo o trabalho de figurino acompanha esse progresso).
É preciso fazer um aposto, no entanto, para citar Mark Ruffalo (em um dos papéis mais dignos de nota de sua carreira nos últimos 15 anos) como o advogado Duncan, o amante cafajeste e desapegado que eventualmente torna-se possessivo e dominador, e Willem Dafoe como Godwin Baxter, o cirurgião desfigurado pelas torturas físicas do pai que encontra em suas criações um propósito de vida – ainda que sob maquiagem pesada, ele subverte o typecasting1 ao qual costuma ser submetido e entrega o personagem numa interpretação delicada e sensível. Apelidado por Bella com o hipocorístico “God”, o jogo de palavras faz uma referência evidente ao fato dele ser, durante o primeiro ato do filme, não apenas seu criador, como também seu Deus, para todos os efeitos – e no entanto, não há nada de divino em Baxter, um homem demasiadamente humano, amedrontado, vacilante, arrogante, frágil mesmo que fisicamente.
Quando analisamos o arco de Bella, o filme de Lanthimos afasta-se definitivamente de ser um pastiche d’O Moderno Prometeu. Seu amadurecimento e sua integração (na medida do possível) à sociedade se dá a partir de três fatores: o descobrimento (e o desenvolvimento) do prazer sexual, a tentativa de adequação comportamental e, por fim, a formação intelectual. O segundo e o terceiro fator são explorados em maior ou menor grau: quando Duncan tenta levar Bella para bailes e jantares refinados em um luxuoso hotel lisboeta, ela o constrange e gera confusões com todos os presentes, e nesse aspecto há algum comentário sobre como homens apaixonam-se por mulheres por sua imprevisibilidade e seu gênio único, mas tentam domá-los e controlá-los a todo custo (ver Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado); a autonomia intelectual da personagem é deflagrada pelo primeiro contato com a filosofia clássica, através de livros que lhe são emprestados pelos passageiros de um cruzeiro, e refinado quando ela desenvolve consciência de classe na prática e passa a frequentar ativamente as reuniões de um movimento socialista parisiense. É, porém, a relação da protagonista com sexo e sexualidade que recebe maior destaque no longa: francamente maravilhada com a euforia e a satisfação do ato, Bella passa a ser vista por Duncan como a amante ideal, mas é abandonada por ele quando, em um momento de necessidade, prostitui-se por dinheiro sem se atentar às implicações morais de tal gesto (por não ser familiar às mesmas). Abandonada pelo advogado, ela torna-se quadro fixo num bordel, onde gradualmente passa a entender as nuances e problemáticas do trabalho sexual.
Uma parcela significativa das discussões (nos mais diversos espaços) suscitadas pelo filme diz respeito à forma como Bella relaciona-se com o sexo. Ora, se a princípio ela é, para todos os efeitos, um bebê em um corpo adulto, não haveria algo de repulsivo em colocá-la na posição de ser cortejada por homens adultos, empreender relações sexuais com eles e, ainda por cima, demonstrar prazer? Quando começa a relacionar-se com o personagem de Ruffalo, seu comportamento ainda é infantil ao extremo. Pobres Criaturas parece não se interessar em debruçar-se sobre as nuances mais espinhosas dessa questão – pelo menos, não o faz diretamente, mas o estranhamento causado por essa conjunção de fatores certamente tem algo de intencional (Lanthimos é desses cineastas que prezam pelo incômodo, ainda que não seja primário na forma como articula isso como um Von Trier, por exemplo). São sensações que permeiam pelo subtexto enquanto, num primeiro plano, a obra trata o amadurecimento de sua protagonista de forma muito particular, não tentando equipará-la à infância, adolescência ou idade adulta convencionais. Também desagradável pode ser o trato de Bella, a rigor, como um verdadeiro objeto durante a maior parte da história – ainda que ela seja ativa e mude diversas vezes o curso de sua própria vida, é apenas no último ato que ela verdadeiramente atinge sua autonomia.
Há todo um propósito no modo como isso tudo é estruturado e desenvolvido, é claro, mas por vezes Lanthimos não consegue escapar de uma visão incontornavelmente masculinista acerca de uma narrativa de emancipação feminina. Residem nisso alguns dos maiores problemas de Pobres Criaturas. Durante o filme, no entanto, por vezes não nos atentamos a isso enquanto nos deixamos levar por Emma Stone, uma das melhores atrizes do atual cinema americano que entrega, aqui, um de seus melhores papéis.
POBRES CRIATURAS (2023), dir. Yorgos Lanthimos [trailer].
Sinopse: A jovem Bella Baxter é trazida de volta à vida pelo cientista Dr. Godwin Baxter. Querendo ver mais do mundo, ela foge com um advogado e viaja pelo mundo. Livre dos preconceitos de sua época, Bella exige igualdade e libertação.
Duração: 141 minutos.
Obrigado por ler esta crítica da Recortes de Película!
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Termo anglófono que define "a prática de escalar um ator repetidas vezes em um mesmo tipo de papel, especialmente por causa de sua aparência física ou de seu sucesso ao viver esse tipo de personagem”. Tradução livre do inglês para a definição da palavra no Dicionário Collins.
Excelente resenha!!! Se registra a questão sexual da personagem mas não haveria seres humanos de idade adulta normais com mentalidade sexual infantil?