RECORTES CRITICA: Pedágio (2023)
Crítica do filme mais premiado da 25ª edição do Festival do Rio, por Igor Nolasco.
Não se vê céu azul em Cubatão. Durante o dia, quando a atmosfera não está densamente enevoada pela poluição característica de uma cidade industrial, ainda assim o clima mostra-se predominantemente nublado. Nas raras ocasiões – geralmente, ao crepúsculo – em que magros raios solares conseguem encontrar uma brecha por entre as poucas nesgas deixadas pelas nuvens de chuva e de fumaça, eles não obstante parecem distantes, fora do campo de visão dos que circulam pelos bairros populares; nunca incidem diretamente sobre seus rostos, como que deixando claro que aquelas pessoas estão, literalmente, procurando um lugar ao Sol. A mera construção visual dessa ambientação, que delineia-se de forma bem clara já nos primeiros minutos, seria suficiente para tornar Pedágio um filme, no mínimo, interessante em suas composições e texturas. Em matéria de dramaturgia, ademais, o novo longa de Carolina Markowicz foge do óbvio na maneira como conduz as questões sociais propostas pelo texto e se revela uma das boas surpresas do cinema brasileiro no ano de 2023. A produção chega essa semana ao circuito comercial após transitar por festivais e mostras dentro e fora do país, tendo se sagrado um dos títulos mais vitoriosos no último Festival do Rio.
Retomando a parceria com Maeve Jinkings (com quem trabalhou em Carvão (2022), seu longa anterior), Markowicz explora o microcosmo doméstico e profissional de Suellen, mãe solteira que trabalha em uma cabine de pedágio e que mostra-se afundada em constrangimento quando suas colegas descobrem vídeos gravados e veiculados na internet por seu filho. Nas filmagens, Antônio – ou “Tiquinho”, no apelido maternal – pode ser visto dançando em seu quarto, sob a iluminação de lâmpadas estroboscópicas; desinibido, dubla velhas canções anglófonas enquanto fita a câmera, por vezes sensualiza e anuncia a venda de produtos. Receosa sobre a sexualidade do rebento, empreende acalorados bate-bocas dentro de casa e, fora dela, apela para o espiritual ao acender “velas de virilidade” no topo de morros, ao alvorecer, antes de seguir para a labuta.
Aboletado em sua casa está também o namorado Arauto, que alega ganhar uns trocados camelando como segurança de boate mas, em verdade, revende relógios roubados na pista com o auxílio de um parceiro. Inicialmente revoltosa ao descobrir a real ocupação do companheiro, Suellen eventualmente percebe que pode unir esforços com ele e, assim, utilizar o rendimento dessa operação para seus próprios interesses. Enquanto atravessa o expediente recebendo e devolvendo dinheiro em espécie para mãos que entram e saem pelas janelas dos carros, ela passa a orientar Arauto por mensagens de texto quando vislumbra um bom relógio, fazendo com que ele e seu comparsa interceptem a vítima pouco depois do pedágio e façam a féria do dia. Através dessa receita, Suellen pode levar à cabo sua vontade de matricular Tiquinho em uma espécie de “terapia de conversão”, caríssima e ministrada por pastor evangélico lusitano, visando lhe converter compulsoriamente à heterossexualidade.
Em um tom que, ao abordar o curso onde Antônio ingressa, por vezes vai do satírico ao absurdista, a cineasta ainda assim mantém-se distante do tom especulativo e distanciado adotado, por exemplo, por Divino Amor (2019), obra que automaticamente vem à mente quando se trata de enredos que discorrem sobre o neopentecostalismo enquanto instrumento para a repressão do desejo e instituição cada vez mais incontornável ao se pensar o Brasil. Claro, isso se dá por uma questão de abordagem narrativa e também visual – Markowicz não situa a temporalidade de sua história no espectro da ficção científica distópica como Gabriel Mascaro na fita supracitada; ao contrário, calca a ação em um presente bem palpável e cujo aspecto mundano é ressaltado pela iluminação naturalista (que em tomadas internas ocasionalmente chega a lembrar o “estilo Caravaggio”1 de Pedro Costa) e pelos espaços escolhidos como definidores das trajetórias das personagens (o restaurante popular, o botequim, a linha do trem, a carrocinha de cachorro-quente, o lar humilde). Para além disso, o foco de Pedágio não está meramente em discorrer sobre a penetração da religiosidade evangélica na sociedade e em sua utilização enquanto perpetradora de discursos de ódio e de normas comportamentais draconianas. Mesmo que a crítica à hipocrisia do cristianismo à brasileira esteja lá, o pastor português e sua terapia de conversão mostram-se presentes na história para, se tanto, servirem como um propósito para que tanto Suellen quanto Tiquinho se imponham enquanto sujeitos, cada um à sua maneira.
Visivelmente estimulada pelo fator de risco do esquema que arquiteta com o namorado, a operadora de caixa insuspeita de um pedágio rodoviário passa a se viciar na adrenalina, no dinheiro fácil e nos pequenos luxos que a situação proporciona, bem simbolizados por um relógio que convence Arauto a não vender, para que ela possa usá-lo em seu próprio pulso – mesmo que apenas dentro de casa, para não chamar atenção. Gradualmente, vemos uma Suellen mais ativa e assertiva em suas atitudes cotidianas, agente de si mesma, enquanto acompanhamos, ao mesmo tempo, um Antônio que não se dobra à norma sexual e social: à revelia da situação em que se encontra, desenvolve-se afetiva, romântica e sexualmente, senhor de si.
De início, o adolescente mostra-se taciturno, de poucas palavras e irritadiço no trato; ele se enclausura no quarto fechado, não conseguindo articular suas emoções para a mãe ou para eventuais interesses amorosos. Conforme o convívio com Suellen vai se deteriorando, Tiquinho mostra-se cada vez mais autônomo ao invés de ceder à submissão, contrariando expressamente as vontades da mãe e, por vezes, a afrontando diretamente, na medida em que se torna mais expressivo e desenvolto – o que pode ser notado, mesmo, por sua postura física e por como se coloca diante da mãe (nesse sentido, o mérito também deve ser dado para o jovem Kauan Alvarenga, que contracena de igual para igual com uma atriz experiente como Jinkings). Essas tensões eventualmente desaguam no último ato do filme, em verdade uma espécie de epílogo, e que é quando os dois protagonistas, pelo bem ou pelo mal, precisam aceitar um ao outro como são e unir esforços para levar a vida adiante dentro de uma nova estrutura. A sequência que deflagra esse epílogo – toda focada em uma visita de Tiquinho (que, à beira dos dezoito anos no primeiro ato, começa o filme menino e o termina homem) a Suellen – é a primeira diegeticamente realizada num contexto onde ela encontra-se numa posição mais vulnerável que a dele, e portanto precisa deixar que sua cria conduza os termos da conversa.
Trata-se do único momento, em toda a minutagem do longa, em que a luz solar atinge diretamente o rosto de um dos personagens, queimando-lhe a pele e fazendo irradiar sua vida interior para além do dito. E esse Sol ilumina Antônio.
Chegando ao público após uma leva de produções dos últimos anos que vem dando cada vez mais ênfase em narrativas que versam sobre gênero e sexualidade, Pedágio se sobressai por sua abordagem original e por sua efetividade na condução da relação entre mãe e filho em uma trama que se sai bem ao utilizar o pedágio, simbolicamente, também como elemento de transição (não é por acaso que o letreiro com o título aparece duas vezes, ao início e ao final da projeção). Também marcam o filme os diálogos afiados na boca de boas personagens secundárias – o Arauto vivido por Thomaz Aquino (em um de seus papéis mais fora da curva); a colega de trabalho de Suellen no pedágio, que a apresenta à terapia de conversão (fervorosamente evangélica e casada há mais de trinta anos, mas que trai o marido com motociclistas na beira da estrada); o contrabandista que adquire os relógios roubados; o colega de curso com quem Antônio passa a se abrir. Há toda uma reunião de tipos que, em exemplares recentes do novíssimo cinema brasileiro, por algo como uma unidade tonal que vem sendo abraçada pelo projeto estético/temático de alguns de nossos cineastas, provavelmente sairiam todos à moda do caricatural (o que, em determinadas abordagens, passa longe de ser um problema), mas que aqui compõem de forma natural esse universo climática e moralmente turvo esquematizado pela diretora.
Com seu novo longa, Carolina Markowicz impõe-se de forma incontornável como uma das realizadoras de visão mais interessante em atividade no país. Com a projeção que vem granjeando, seus próximos projetos podem e devem ser acompanhados de perto por aqueles que se ligam nas coisas do cinema brasileiro.
PEDÁGIO (2023), dir. Carolina Markowicz [trailer].
Sinopse: Suellen, cobradora de pedágio, percebe que pode usar seu trabalho para fazer uma renda extra ilegalmente. O seu objetivo é financiar a ida de seu filho à caríssima cura gay ministrada por um famoso pastor estrangeiro.
Duração: 101 minutos.
Obrigado por ler esta crítica da Recortes de Película!
A Recortes tem como interesse fornecer para sempre seu conteúdo de forma gratuita. Se você aprecia o nosso trabalho, considere tornar-se um inscrito pago pelo Substack ou fazer uma contribuição individual.
Caravaggio (1571-1610) foi um pintor italiano barroco cujo estilo pictórico é marcado por pontos de luz natural que iluminam as figuras humanas em meio a ambientes internos. Os filmes do cineasta português Pedro Costa são assumidamente influenciados pelas noções de composição e iluminação caravaggianas. Um pouco mais sobre a influência de Caravaggio em Costa e outros cineastas nesse artigo do portal ColabCine.