RECORTES CRITICA: Mussum, o Filmis (2023)
A estreia da seção crítica da Recortes, por Igor Nolasco.
Desde a reestruturação institucional do cinema brasileiro comercial, dada a partir da segunda metade da década de 1990, um dos modelos mais reconhecíveis a serem apontados nas produções que chegam ao grande circuito é aquele que foi, a rigor, inaugurado na pós-retomada por títulos como Cazuza – O Tempo Não Pára (2004) e Dois Filhos de Francisco (2005): o da cinebiografia de personalidades populares e emblemáticas do universo musical ou televisivo nacional. Ao longo das últimas décadas, foram oferecidos ao público incontáveis exemplares do subgênero, trazendo as trajetórias de vida de biografados ilustres como Luiz Gonzaga, Hebe Camargo, Tim Maia, Erasmo Carlos, Chacrinha e Wilson Simonal – todos filtrados sob uma ótica e uma estrutura mais ou menos formulaicas. Só em 2023, pelo menos três filmes que se enquadram nesse perfil foram objeto de amplo lançamento: Nosso Sonho, sobre a dupla de funk melody Claudinho e Buchecha; Meu Nome É Gal, tributo à cantora baiana Gal Costa; e agora Mussum: O Filmis, que estreou oficialmente na primeira semana de novembro após pré-estreias no Festival de Cinema de Gramado, no Festival do Rio e na Mostra de Cinema de São Paulo.
Estreia do ator e dramaturgo Sílvio Guidane na direção de longa-metragens de ficção, a cinebiografia de Mussum investe no seguro ao seguir, de forma telegrafável, a linguagem e os passos exigidos pelo formato: o primeiro ato in media res, que vai de um evento vivido no auge da carreira para as memórias de infância do pequeno Carlinhos, os momentos divisores de águas durante o amadurecimento do jovem Antônio Carlos e a escalada para o sucesso de Mussum, à moda da narrativa circular. A grande saída encontrada aqui – e saída não no sentido de subterfúgio fácil, mas sim no de solução inventiva – está em centrar o filme na relação entre o protagonista e sua mãe.
Ao tornar esse vínculo o ponto central da história, Guidane e o roteirista Paulo Cursino se desviam, pelo menos no primeiro plano, do que seria esperado pelo público geral para um filme sobre Mussum. O samba, a circulação pelas favelas cariocas, o copo na mão, o lado caricatural e a parceria com Os Trapalhões estão todos lá, claro, como não poderiam deixar de estar. Ainda assim, essas passagens – que servem como etapas que o personagem principal deve atravessar – não possuem o peso ou a importância cênica das trocas entre mãe e filho, em muito beneficiadas pela escalação provincial das duas atrizes que vivem a matriarca Malvina: a lendária Neusa Borges, que interpreta o papel durante a parcela majoritária do filme, e uma surpreendente Cacau Protásio, presente no período que vai da infância à juventude de Mussum.
Um dos grandes triunfos da obra, diga-se de passagem, está nessa rara escalação de Protásio, conhecida por participações em humorísticos no cinema e na televisão, em um papel dramático. Adaptando seus conhecidos trejeitos e expedientes para o que é exigido de uma personagem mais densa, Protásio é um dos grandes destaques da produção e protagoniza um dos momentos mais genuínos, em matéria de emoção, de todo o conjunto. Em tom semelhante, o ator e comediante de stand-up Yuri Marçal é trazido para viver o jovem Antônio Carlos e se entrega não apenas à caracterização, como a uma performance fora do que lhe é tonalmente habitual. Esse movimento de trazer atores conhecidos pelo humor e lhes dar espaço para exercitar os músculos dramáticos com maior nuance lembra – guardadas as devidas proporções – o movimento empreendido por Nelson Pereira dos Santos ao dar a Grande Otelo o melhor papel de sua carreira, em Rio, Zona Norte (1957). Essa escolha, em Mussum: O Filmis, não parece feita por acaso, e talvez tenha algo de diálogo com a própria trajetória da figura abordada.
É preciso, claro, falar sobre Aílton Graça. Sua presença, que sempre abrilhanta até as menores participações, como a do zelador da faculdade de medicina em M-8: Quando a Morte Socorre a Vida (2019), de Jeferson De, ultimamente vem ganhando maior espaço em filmes como Correndo Atrás (2018), do mesmo diretor, e O Pai da Rita (2022), de Joel Zito Araújo – todos os três, obras representativas do que pode, de forma ainda que canhestra, ser mal rotulado como o “novo cinema negro” brasileiro que vem sendo desenvolvido desde os anos 2000, a partir do Dogma Feijoada e do Manifesto de Recife1. A escolha do longa de Guilane em trazê-lo para o papel principal possui camadas que passam por essa relação, mas não se limita a uma escalação meramente pragmática. Metamorfoseado em Mussum por uma boa caracterização, o ator – que também possui um trabalho significativo em humorísticos – não só mimetiza à perfeição todos os tiques, bordões e idiossincrasias da persona televisiva do biografado, como traz uma interpretação radicalmente diferente para os momentos relativos à sua vida pessoal, onde aparece mais contido, vulnerável e tridimensional.
Nesse sentido, Graça em muito se beneficia de um texto que basicamente levanta a bola para o ator cortar, trazendo um lado “humano” para a figura de Mussum que vai muito além do espirituoso integrante da trupe televisiva de Didi e companhia. Mostrado em todas as suas qualidades e defeitos, ele atravessa o filmis devotando seu tempo de forma quase integral ao trabalho, visando prover à sua família e retribuir ao zelo de sua mãe, mas também é mostrado como mulherengo, infiel em seu primeiro casamento e bebedor ávido. Apesar de, evidentemente, pintar o personagem-título sob uma luz majoritariamente positiva, a produção por vezes ensaia distanciar-se parcialmente das cinebiografias mais “chapa-branca”, oficialescas. Não chega às vias de fato, mas ao assumir o tom de homenagem, aposta no emocional enquanto ferramenta para fisgar o espectador (como cinebiografias tendem a apostar), e se desenvolve bem dentro dessa proposta. O elenco de apoio recheado de participações, quase sempre bem escaladas e que compreendem figuras seminais em matéria de música e televisão na segunda metade do século XX, como Elza Soares, Cartola, Jorge Ben, Chico Anysio, Alcione e, claro, Renato Aragão e os outros Trapalhões, está ali para oferecer maior contextualização histórica/cultural para a trajetória de Mussum, e situa-lo no patamar de importância que ocupa na cultura e na iconografia popular brasileira.
Sob o propósito de retratá-lo de uma posição afetuosa e fechar sua narrativa ao redor das trocas com a mãe, Mussum: O Filmis entrega uma cinebiografia redonda e dentro do formato, mas que se sobressai por uma série de escolhas que elevam o material em meio aos exemplares menos inspirados do filão. Foi, até o momento, o filme brasileiro de 2023 que melhor faturou em sua estréia comercial2, e tem tudo para se estabelecer como relativo sucesso de público por meio do boca-a-boca – como aconteceu, há pouco, com Nosso Sonho – dentro da janela oferecida ao cinema brasileiro pelo atual parque exibidor, que prioriza o que vem do estrangeiro e, na maior parte do tempo, trata a produção nacional como material de segunda classe. Queiramos ou não, cinebiografias como a de Guidane estão entre os poucos filmes que, hoje, conseguem penetrar as redes multiplex e trazer o espectador ao cinema para assistir a um longa brasileiro. Enquanto esse paradigma não mudar, obras como Mussum: O Filmis continuarão cumprindo o papel que lhes cabe.
MUSSUM, O FILMIS (2023), dir. Sílvio Guindane [trailer].
Sinopse: A trajetória de Antônio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum, dos Trapalhões. A infância pobre, a carreira militar, a relação com a Mangueira e o sucesso com o grupo Originais do Samba, além dos bastidores como integrante dos Trapalhões.
Duração: 116 minutos.
Obrigado por ler esta crítica da Recortes de Película!
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O Dogma Feijoada (2000) e o Manifesto de Recife (2001) são dois manifestos assinados por cineastas, atores e trabalhadores do setor audiovisual no começo dos anos 2000, que reivindicavam melhores condições de trabalho e maior participação para atores, cineastas e técnicos negros no mercado cinematográfico e televisivo brasileiro, para além da arregimentação de uma produção cinematográfica diferenciada, comandada pela população negra e focada em narrativas que lhes priorizassem enquanto sujeitos. Dentre os signatários dos dois manifestos, estão cineastas como os supracitados Jeferson De e Joel Zito Araújo.
Para mais informações, ver Noel Santos Carvalho: Manifesto de Recife e Dogma Feijoada: auto-representação e modernidade negra.
Dados do portal Filme B. Uma matéria discorrendo sobre o fato em algum nível de detalhe, no portal brasileiro da CNN: “Mussum, O Filmis” é maior estreia do cinema brasileiro em 2023.
ótima a ideia pra variar o conteúdo da newsletter!
Adorei a crítica!