RECORTES CRITICA: Levante (2023)
Crítica do filme brasileiro premiado na 62ª edição da Semaine de la Critique de Cannes, por Igor Nolasco.
Um espectador pode adentrar a sessão de um filme qualquer com uma maior ou menor quantidade de informações a respeito do que está prestes a assistir. Pode sentar-se para ver Levante, por exemplo, sabendo que trata-se do único longa-metragem brasileiro a participar da última edição do Festival de Cannes. Talvez tenha lido alguma coisa antes de chegar ao cinema informando que a narrativa envolve uma adolescente que deseja abortar uma gravidez indesejada. Pode até mesmo saber que trata-se do longa de estreia da diretora Lillah Halla. Nenhuma informação dessa espécie, porém, é capaz de antever, com exatidão, o que esse espectador sentirá diante do desenrolar da projeção. Está aí uma das coisas mais belas do cinema: a imprevisibilidade da reação ante às imagens.
Verdade seja dita: Levante é, nesse sentido, um filme dificílimo. Encarar a sessão até o final não é para qualquer um. Em dados momentos, o público pode contorcer-se na cadeira, tentando desviar o olhar por alguns segundos, mas em vão – o que há de sufocante na obra é sobretudo a carga física e psicológica das violências imputadas à sua protagonista e a forma como isso vai, gradualmente, progredindo nas tensões apresentadas até o clímax. Halla articula tudo visualmente de forma surpreendente: sem ater-se a cacoetes estéticos que remetem ao grosso da produção do “novíssimo cinema brasileiro” de uns quinze anos pra cá, mas também sem exatamente realizar um “filme de gênero” propriamente dito, a cineasta entrega o que é, basicamente, um filme de terror sobre ser mulher no Brasil. Que fique claro: não falamos, aqui, apenas sobre a experiência de uma mulher cisgênera lidando com uma gravidez. É realmente uma parábola sobre o cerceamento da liberdade da mulher num geral, sobre como diversas formas de violência são imputadas ao gênero, sobre como a busca por autonomia no que diz respeito ao próprio corpo e a seu livre arbítrio pode ser uma verdadeira via crucis.
A história de Sofia, jogadora de vôlei de dezessete anos contemplada com a possibilidade de conseguir uma bolsa para praticar o esporte no exterior, está imersa em um contexto de diversidade e desvio à norma: negra e moradora do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, ela e suas colegas e amigas representam diversos espectros da vivência queer. Sobretudo em seus primeiros minutos, antes da história tornar-se mais densa e mais pesada, Halla explora de forma livre (e mesmo leve) o companheirismo entre as integrantes do time de vôlei, suas aventuras e seus momentos de descontração compartilhados, tornando aquelas relações palpáveis de um jeito que o cinema, num geral, costuma reservar às retratações da sociabilidade masculina e cisgênera. São essas amizades (e mesmo relações afetivas) que servirão como principal rede de apoio para Sofia a partir do momento em que ela descobre uma gravidez que pode colocar a realização de seu sonho em risco, e as possibilidades para abortá-la mostram-se todas clandestinas, perigosas ou incertas – e na medida em que sua vontade de fazê-lo passa a ser demonstrada ou discutida mais abertamente, ela vai se tornando cada vez mais persona non grata em sua vizinhança.
Esse é um dos aspectos nos quais a cineasta melhor consegue trabalhar o clima de Levante para fazê-lo se assemelhar a um filme de terror. Quando Sofia se olha ao espelho, antevendo as transformações pelas quais seu corpo passará caso a gravidez indesejada prossiga, o faz em sequências que são em tudo decupadas e musicalmente embaladas para remeter ao horror. Mais que isso: ainda que seja representado fisicamente por uma personagem (a missionária evangélica que tenta obstruir o caminho de Sofia e forçá-la a ter a criança), “o inimigo”, na trama, não tem rosto definido. Quando a protagonista sai de casa, durante o dia, planos distantes mostram vizinhos a observando, silenciosos, de suas varandas; senhoras conversando na sacada e trocando olhares suspeitos; pessoas que entram de volta para suas casas quando veem a garota por os pés na rua. Quando sai durante a noite, as ruas completamente vazias e iluminadas de forma irregular tornam-se ambientes hostis: qualquer coisa pode acontecer, gerando expectativa e medo. Não sabemos ao certo quem foram as pessoas que depredaram a casa do pai de Sofia, em dado momento do filme, apenas que estão associadas ao fanatismo neopentecostal comum ao zeitgeist em que o país está inserido. O “inimigo invisível”, sem rosto definido e com capilaridade para agir em qualquer ambiente que rodeia a personagem, é sempre mais assustador do que um vilão sólido, material.
É na rede de apoio de Sofia (as amizades, o pai, uma vizinha que se compadece com sua situação) que a narrativa encontra, entre as poucas nesgas permitidas pela tensão constante desse inimigo invisível, respiros para dar à protagonista algum vislumbre de solução feliz e viável. É a presença desse grupo que faz com que o final de Levante pareça incerto até os momentos finais da projeção: tudo pode acontecer, e há possibilidade de alguma luz no fim do túnel mesmo em meio a um contexto tão brutal e brutalizador. Acaba sendo também um filme sobre a cumplicidade LGBTQIA+ na geração Z, em sobre como essa juventude também é mais forte a partir do momento em que está junta. Eis um dos aspectos mais alegóricos do filme.
Alegóricos, sim, pois apesar de narrativamente bem delineada em torno da figura de Sofia, a trama de Levante é extremamente familiar e pode ser lida como representante de uma problemática coletiva: ainda que tabu, as dificuldades causadas pela proibição do aborto legal e seguro no Brasil são conhecidas por todos e vividas na pele por muitos; a coisificação da mulher e o cerceamento de sua própria liberdade de escolha são, em suma, uma das principais temáticas articuladas pela diretora Lillah Halla. Em dado momento, até parece que as coisas vão dar certo. Na medida em que o cerco vai se fechando, porém, é incontornável a constatação de que, terminando ou não em tragédia, a história de Sofia é um periscópio para um problema mais amplo, que não deixa de existir com a resolução de seu drama pessoal.
Ainda que possua tais características, não se trata de uma obra meramente didática: em um momento no qual muito se fala sobre filmes “necessários”, cujo valor é atribuído por muitos à retratação que fazem sobre determinadas pautas (acima, mesmo, dos méritos cinematográficos propriamente ditos que a obra possa ter), Levante sustenta-se como um interessante estudo sobre a juventude queer paulistana, um dos longas mais fortes da safra brasileira de 2023 e um criativo exercício que modula os signos do horror para falar sobre uma realidade muito palpável.
LEVANTE (2023), dir. Lillah Halla [trailer]
Sinopse: Sofia é uma jovem atleta que descobre estar grávida às vésperas de um campeonato de vôlei decisivo para sua carreira como esportista. Na tensão do momento, ela só tem uma certeza: não pode virar mãe.
Duração: 99 minutos.
Obrigado por ler esta crítica da Recortes de Película!
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