RECORTES CRITICA: I Saw the TV Glow (2024)
crítica do aguardadíssimo novo filme de jane schoenbrun, por isabela thomé.
the longer you wait, the closer you get to suffocating
pouco tempo atrás, eu descobri que existe um jeito de você acessar todas as pesquisas que você já fez na vida no Google — ou melhor, todas as pesquisas desde aquele fatídico dia em agosto de 2005 no qual você criou uma conta no Gmail. vasculhar essas pegadas digitais, essa espécie de arqueologia computacional, esses pequenos indícios de que você sempre teve uma alma é uma experiência que começa divertida, mas vai lentamente se tornando um quebra-cabeça que você não necessariamente quer desvendar. em algum ponto de 2006, talvez buscando encontrar carros, eu procurei pelo site carros.com.br. no ano seguinte, diversas visitas ao endereço wii-brasil.com.br, fonte inesgotável de informações sobre os últimos lançamentos da Nintendo no final dos anos 2000. em 2007, eu queria muito conhecer os recordes mundiais mais interessantes do mundo no site do Guinness. em 26 de maio de 2009, uma terça-feira, às 21:46h, eu cheguei ao site iamtransgendered.com. uma hora você descobre que tem algo de errado
I Saw the TV Glow é o terceiro longa-metragem de Jane Schoenbrun, diretora e pessoa trans não-binária. o seu primeiro longa-metragem, A Self-Induced Hallucination (2018), é um grande compilado de centenas de vídeos feitos por YouTubers amadores sobre o fenômeno do Slenderman — um homem branco alto que aterroriza YouTubers amadores com uma frequência muito maior do que a população geral. eu assisti A Self-Induced Hallucination no começo deste ano, durante uma tarde de férias, em um quarto escuro de cortinas fechadas.
já o seu segundo longa-metragem, We're All Going to the World's Fair (2021), é uma história sobre internet. espaços online. uma baleia azul colonizadora, de certo modo. você lembra o que fazia na internet quando era adolescente? existiam servidores do Discord ou você passava as noites em fóruns obscuros? eu assisti We're All Going to the World's Fair em algum ponto de 2022, em um dia tranquilo e sem muitas demandas de trabalho na assessoria de imprensa da universidade onde eu estagiava na época. eu tinha 26 anos e havia iniciado a transição de gênero poucos meses antes.
I Saw the TV Glow é sobre isso. qualquer pessoa transgênero que falar, discutir, analisar, escrever sobre o filme trará uma perspectiva absurdamente pessoal à mesa. claro, cada pessoa no mundo possui experiências individuais, mas os sentimentos de alienação, de isolamento, de desprendimento do mundo ao seu redor são sempre uma constante. você vai sentir isso até o momento que entender o que está sentindo, e talvez você entenda eventualmente e faça o que precisa ser feito, e talvez você entenda eventualmente e negue que está entendendo, e talvez você nunca entenda. são todas possibilidades reais. as coisas podem ser melhores, e alguém pode te falar isso, mas a grande armadilha é que você precisa aceitar sozinho. isso ninguém pode fazer por você
The Pink Opaque é sobre isso. a série ficcional dentro do mundo de I Saw the TV Glow guia a história como fosse um Buffy the Vampire Slayer não-existente — todo sábado, 22:30h, na Young Adult Network. a construção desse universo lembra muito uma creepypasta que você encontraria no fórum paranormal do 4chan em algum ponto da adolescência — programas de televisão perdidos, antagonistas horripilantes, memórias falsas. sabe aquele programa de pirata que a gente assistia quando era criança? por algum motivo eles nunca paravam de gritar. assistir The Pink Opaque era um pecado, assistir Sorriso Metálico era heresia, assistir Hi Hi Puffy AmiYumi, como assim? isso é um desenho de menina. é como se qualquer representação feminina fosse intrinsecamente negativa, algo a se evitar, mesmo que haja um homem feito de sorvete no meio do caminho. mesmo que a lua grite com você
tudo em I Saw the TV Glow remete a um sonho, ou remete a vários sonhos, ou remete a vários longos e tenebrosos pesadelos. em seu cerne isso é um filme de terror, mas você não vai se assustar com qualquer monstro de seriado dos anos 90 que venha a aterrorizar as protagonistas — ao menos se as luzes estiverem acesas. o verdadeiro terror está dentro de você. é o que pode acontecer com a sua vida, é sobre as consequências da falta de ação, é o pavor de construir uma família, meu Deus, eu não quero. é um terror existencial, um terror que se instala em você. uma peste, uma praga, um pânico. vai ser isso pra sempre? eu não posso querer mais? I Saw the TV Glow é sobre querer mais.
sem querer imputar algo a um filme que talvez nem esteja buscando qualquer rótulo, I Saw the TV Glow pode ser descrito, se assim desejar, como importantíssimo. uma narrativa trans produzida por uma pessoa trans que não tenta jogar para a torcida — se você é uma pessoa cis e não sentiu na alma o que o filme está dizendo, tudo bem. se você achou ele chato e lento, tá ótimo. ele não foi feito pra você e não tem qualquer pretensão de ter sido feito pra você. talvez você acredite ser cis e o filme tenha te feito entender alguma coisa. nesse caso, eu posso até te falar alguma coisa, mas você precisa aceitar sozinho
I Saw the TV Glow, graças a Deus, é uma história trans que não começa no “estou triste com o meu gênero” e muito menos termina no “agora eu estou feliz com o meu gênero”. é uma história trans madura, sem estereótipos, sem obviedades, em um nível que apenas algumas visual novels no itch.io e posts no Tumblr conseguiram chegar. I Saw the TV Glow é sobre a aba de perguntas frequentes no iamtransgendered.com. é sobre acompanhar uma transição através de posts em um grupo fechado do Facebook. é sobre qualquer estranho da internet que conhecia o seu verdadeiro eu anos, décadas antes da sua família, amigos ou colegas de trabalho. é sobre um vestido. a masculinidade é uma prisão. óbvio que é. I Saw the TV Glow é sobre os pequenos indícios de que você sempre existiu
i saw the tv glow (2024), dir. jane schoenbrun [trailer].
sinopse: owen e maddy são dois adolescentes suburbanos que ficam tão obcecados por um programa de televisão que não conseguem mais distinguir a vida real da ficção.
duração: 100 minutos.
obrigado por ler esta crítica da recortes de película! o texto de hoje é uma parceria com isabela thomé, criadora da newsletter eu destruirei vocês.
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quem diria que esse seria o maior crossover de todos os tempos desde o filme the avengers
Fantástico, Isabela! Você me ajudou a entender que o filme, que inicialmente parecia uma ficção psiquiátrica para mim, na verdade é sobre uma transformação humana.