RECORTES CRITICA: Cidade; Campo (2024)
Crítica do novo filme da diretora brasileira Juliana Rojas, por Igor Nolasco.
“Saio do trabalho, ê
Volto para casa, ê
Não lembro de canseira maior
Em tudo é o mesmo suor”Os Escravos de Jó, canto de trabalho tradicional, imortalizado pelas gravações de Clementina de Jesus para os discos Milagre dos Peixes e Convidado Especial: Carlos Cachaça
Que Juliana Rojas é uma das cineastas mais fundamentais quando falamos do horror no cinema brasileiro deste século, isso ninguém disputa: seja em trabalhos como Sinfonia da Necrópole (2014), inteiramente comandados por suas mãos, ou naqueles em que divide o crédito de direção com Marco Dutra, como Trabalhar Cansa (2011) ou As Boas Maneiras (2017) (que chegou a, de certa forma, “furar a bolha”), ela tira o que quer do fantástico e do palpável em uma convergência de elementos que resulta num estilo, hoje, já sólido e bem definido. Cidade; Campo, que estreou essa semana em circuito comercial após uma passagem proveitosa pela última edição do Festival de Gramado, é uma boa demonstração não só dessa linguagem própria desenvolvida por Rojas, como também do que parecem ser seus grandes interesses temáticos e simbólicos.
A subdivisão marcada pela pontuação no título reflete-se na estrutura do filme: duas narrativas distintas (ainda que possuam pontos de contato), com a primeira retratando a ida do campo à cidade e a segunda, o processo inverso. A estrutura “episódica” funciona bem: imergimos e nos importamos com as duas histórias, e cada uma possui questões e qualidades que lhes são particulares. No quinhão urbano, prevalece uma abordagem calcada na crítica social ao capitalismo tardio, atualizando temas anteriormente vistos em Trabalhar Cansa para a realidade do discurso coach-empreendedor-uberizado-PJ-MEI-freela do mercado de trabalho brasileiro dos anos 2020; no segmento campestre, temos um maior direcionamento ao suspense, ao horror e aos elementos do místico e do fantástico que, mal comparando, trazem o espectador de volta ao clima de As Boas Maneiras – mesmo que, nesse sentido, a reciclagem de alguns motes narrativos/imagéticos se mostre um pouco autoevidente e repetitiva.
Na primeira metade do longa, acompanhamos uma personagem que se abriga na casa da irmã em São Paulo após um estouro de barragem destruir a fazenda da família em Minas Gerais, fazendo-a perder tudo (o que logo nos remete às tragédias reais que acometeram cidades mineiras como Mariana e Brumadinho). Recebida de braços abertos pela mana Tânia, a fazendeira Joana fuma seu cachimbo enquanto planta couve na hortinha caseira, enfiando os pés na terra para matar a saudade de casa e olhando para a lua e para as estrelas.
Em uma conversa jocosa com o netinho de sua irmã, que torna-se seu mais novo colega de quarto, Joana o aconselha a tomar banho logo após mexer com a terra, metendo-o medo do “bicho geográfico”: larva que, segundo descreve em riqueza de detalhes, pode enfiar-se pele adentro e ir gradualmente comendo a carne de seu hospedeiro. Ainda que o diálogo se dê em tom leve, com algo de alívio cômico, o que é descrito pelas falas é, a rigor, o que a vida nessa nova realidade vai fazendo com a personagem: consumindo-a como um verme subcutâneo. Sem melhores perspectivas de emprego, acaba por trabalhar como faxineira freelancer, cujos serviços são contratados por meio de um aplicativo-cooperativa. Conhece e socializa com outras faxineiras que trabalham “para” o aplicativo (há um vislumbre dessa dicotomia entre espaços de trabalho e momentos de lazer compartilhados que lembra os últimos filmes de Carlão Reichenbach), mas não demora a descobrir que seus supostos “patrões” eximem-se das responsabilidades legais para com suas “funcionárias”, uma vez que não há vínculo empregatício entre as partes. Vai se defendendo, indo de prédio em prédio, de apartamento a apartamento, fazendo suas faxinas enquanto sonha com a volta do filho, caminhoneiro que caiu na estrada apartado da família por motivos nunca explicados – em Cidade; Campo, o não-dito possui quase tanta força quanto o dito, e nesses pontos-chave em que Rojas opta pela sutileza e pela economia nos diálogos, o longa acaba permitindo com que a imaginação do público flua e flutue unicamente através do poder da sugestão – qualidade extremamente estimulante para uma obra de arte. Não faz isso apenas na história de Joana, aliás; talvez esse mecanismo esteja presente de forma muito mais clara, inclusive, na história de Flávia.
O processo é, conforme supracitado, o inverso daquele que caracteriza o primeiro segmento: após a morte de seu pai, fazendeiro falecido abruptamente depois de queimar suas próprias plantações, a jovem Flávia e sua companheira Mara trocam a cidade grande pela vida no campo, que julgam sossegada, distante do caos urbano e próxima do contato com a natureza. O comentário social continua presente no que tange as críticas ao mercado de trabalho da era digital: a personagem comenta, en passant, que ela e a namorada eram trabalhadoras de home office sobrecarregadas e aproveitaram a oportunidade que se apresentou para mudar de vida. O trabalho na terra e a criação dos animais, no entanto, logo mostra-se angustiante e insatisfatório, sobretudo para Mara (Bruna Linzmeyer, atriz de maior renome no elenco e cujo star power é aproveitado por Roja em algumas sequências mais livremente performáticas). Em meio à crescente sensação de isolamento (as únicas pessoas com quem travam contato por ali, num primeiro momento, são os poucos empregados do sítio), Flávia vai descobrindo pistas sobre os interesses e hábitos de seu pai, por meio de livros, cadernos de esboços e outros objetos pessoais deixados pela casa. A tensão vai crescendo à medida em que são explorados, com a mesma sutileza e poder de sugestão que caracterizam a primeira etapa, as questões relativas ao patriarca, e é a partir daí que Rojas vai englobando o sobrenatural com mais força em Cidade; Campo. Ainda que os elementos que caracterizam a abordagem da diretora em relação ao horror já estejam presentes no episódio que ocupa a primeira metade do filme (que, novamente, em muito lembra Trabalhar Cansa), é no que representa sua segunda parte que os signos narrativos, visuais, tonais e as características próprias ao gênero manifestam-se em maior intensidade, o que culmina em uma excelente sequência noturna (talvez a melhor de todo o conjunto) ambientada em uma clareira em meio à mata, sob a luz bruxuleante da fogueira.
Cidade; Campo é uma fita que, em suas narrativas distintas, aborda uma série de temáticas e motivos comuns aos dois tipos de êxodo e às suas duas protagonistas. Chamam a atenção aqueles que são trabalhados pela diretora enquanto representações visuais da vida interior de suas personagens, como a sensação de estar faltando um pedaço de seu próprio coração graças à ausência de um outro – tanto o filho de Joana quanto o pai de Flávia aparecem em cena, presenças fantasmáticas manifestadas pela memória viva da saudade, por breves instantes no filme, lampejos de diálogos que as personagens desejariam ter com quem não está mais por perto. Ao fim da projeção, a impressão que fica é a de mais um trabalho interessante da realizadora, ainda que definitivamente não se trate de uma de suas obras mais bem resolvidas ou marcantes. Sobressai-se, acima de tudo, o que pontuamos nas primeiras linhas deste texto: a consolidação da marca autoral de Juliana Rojas, sobretudo para aqueles que, tendo assistido apenas aos longas co-dirigidos com Marco Dutra, não saberiam até agora (por falta de tato ou por falta de referencial) analisar o cinema da diretora e identificar marcas e características que são, essas sim, só suas.
CIDADE; CAMPO (2024), dir. Juliana Rojas.
Sinopse: Após um desastre natural devastar suas terras, Joana foge para São Paulo, onde tenta recomeçar do zero em um ambiente desconhecido. Enquanto isso, Flávia se muda com sua esposa, Mara, para a fazenda de seu falecido pai, onde ambas enfrentam os desafios de se adaptar à vida no campo.
Duração: 119 minutos.
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