RECORTES CRITICA: Avenida Beira-Mar (2024)
Crítica do novo filme de Maju de Paiva e Bernardo Florim, por Igor Nolasco.
No que se refere ao espaço, um filme pode lidar da forma como lhe convir com a cidade onde for gravado. Pode, por exemplo, ignorar completamente qualquer traço característico que sua locação possa oferecer em matéria textual, narrativa ou prática — e muitas fitas o fazem, numa tentativa de atingir uma espacialidade mais “universal” (lê-se genérica). Também pode, por outro lado, assumir diegeticamente sua localidade diante do público, e mais: se utilizar dela para lançar mão de elementos que apenas aquele município, em particular, poderia proporcionar. Algumas cidades são tão exaustivamente exploradas pelo cinema que um espectador mais experiente pode até sentir que as conhece superficialmente, mesmo que nunca tenha saído do próprio bairro. O cinema norte-americano nos inunda há tantas décadas com imagens de Los Angeles, Nova York, San Francisco e Chicago que certos marcos ou vizinhanças dessas capitais chegam quase a ser palpáveis mesmo para um público global. Ainda que não detenha a hegemonia cultural/industrial hollywoodiana, o cinema brasileiro angaria-se no emblemático eixo Rio-São Paulo para, desde sempre, construir à sua própria maneira a iconografia das capitais dos estados supracitados. Difícil encontrar, por aqui, outra cidade tão amplamente explorada ao longo dos mais de cem anos de cinema brasileiro; outra cidade que tenha uma imagem tão consolidada no imaginário de nossa gente, com sua geografia e arquitetura impulsionadas massivamente por cinema, televisão e outros desdobramentos do audiovisual. Por isso, quando chega ao circuito exibidor um filme rodado fora dessas duas metrópoles, sendo vendido com a proposta de assumir para si essa espacialidade, adentramos a sessão com, no mínimo, a expectativa de ver algo sendo esboçado iconograficamente dentro de uma geografia fílmica possível. No cinema, não existem fórmulas certas para sucesso ou fracasso: assim sendo, nem toda quebra de expectativa é, necessariamente, uma boa surpresa.
Com direção assinada por Bernardo Florim e Maju de Paiva, Avenida Beira-Mar toma seu título emprestado de uma via que, apesar de frequentada por suas personagens, jamais é diretamente nomeada. Sua geografia fílmica se limita a planos majoritariamente fechados (ou com o fundo bem desfocado, à gosto da fotografia) rodados quase sempre em ruas residenciais pouco expressivas, e ainda que sua narrativa se restrinja ao escopo de um bairro, o nome deste sequer é citado en passant (um sub-bairro da região chega a dar o ar da graça, econômico, em um único diálogo). A cidade onde a trama se desenrola é sempre “a cidade”. Em suma, um desavisado pode entrar e sair da sessão sem sequer saber que Avenida Beira-Mar foi rodado no município fluminense de Niterói, quanto mais no bairro de Piratininga (enquanto fitas rodadas na zona sul do Rio de Janeiro jamais deixam passar batida a oportunidade de se falar em Copacabana, Ipanema, Leblon, etc). Isso pode ser bom ou ruim: bom, caso se almeje alçar a espacialidade do longa à categoria da “universalidade”, sobre a qual já discorremos aqui, e ruim se pensarmos que ele poderia colaborar com a construção do imaginário de uma cidade cuja representação audiovisual ainda é insipiente.
É preciso ser justo: a forma como Avenida Beira-Mar lida com sua locação reflete também o que parece ser, como um todo, a proposta visual com a qual Florim & Paiva, em parceria com o fotógrafo Luís Abramo, escolheram trabalhar. Optando por se utilizarem de luz e cor de forma naturalista, eles criam um microcosmo onde quase tudo parece turvo ou impessoal e quase nada se destaca. As noturnas são particularmente significativas para exemplificar esse ponto: dentro ou fora de casa, possuem sua iluminação quase sempre amparada em pontos distantes e fracos, como a luz amarelada dos postes nas vias públicas ou a cúpula de abajures ligados no canto de um cômodo. Em boa parte dessas noturnas fica difícil enxergar qualquer coisa, o que provavelmente se faz de acordo com a sobriedade estética aqui adotada (e que reverbera certas tendências do “novíssimo cinema brasileiro”), mas não dialoga com um filme que, em matéria de linguagem, é perfeitamente convencional. A fita não faz um uso criativo desse breu, não adiciona textura a ele, não explora as possibilidades de construção de cena que a escuridão oferece. Enquanto isso, aquele que tentar distinguir o desenrolar da ação nos planos mais sombrios (e o filme está cheio deles) seguirá forçando os olhos. Uma exceção que se destaca é o gran finale, em que cineastas e fotógrafo parecem finalmente ter conseguido, mais habilmente, construir uma noturna bem-sucedida que, pela primeira e última vez em toda a minutagem, chega perto de construir algo memorável com um marco da iconografia niteroiense.
No mais, o que temos? Um filme centrado em duas atuações infantis (bem eficazes, diga-se), nos papeis de Rebeca e Mika, e numa Andréa Beltrão que, correndo por fora, interpreta Marta, mãe da primeira. Avenida Beira-Mar estabelece uma série de tensões que envolvem essas três personagens. 1. Ex-fumante que retoma o vício nos momentos de estresse, Marta é sobrevivente de um câncer que parece estar voltando a se manifestar. 2. Filha de pais separados e um progenitor ausente, Rebeca sente-se isolada e inicialmente sem amigos em uma cidade com a qual não possui qualquer conexão; Niterói é o local onde sua mãe viveu quando jovem, e para o qual a família se muda quando ela começa a trabalhar para a Prefeitura. Adolescente negra vivendo com uma mãe branca, vê e ouve isso sendo apontado pelos vizinhos, sobretudo quando a ausência de seu pai é posta em xeque. 3. Descobrindo novas percepções sobre gênero, Mika é hostilizada por seus pais, que chegam a se utilizar da violência física; tem o muro da casa de sua família pichada com ofensas, sofre violência de gênero e violência sexual daqueles que cruzam seu caminho e passa seus dias invadindo as casas do bairro e tentando encontrar refúgios onde possa se expressar com liberdade. Em uma dessas invasões, acaba chegando ao quarto de Rebeca: um primeiro encontro significativo, em que aquela está tentando justamente se apropriar das roupas desta.
Outra das maiores inconstâncias de Avenida Beira-Mar, para além de sua proposta visual malsucedida, é a maneira como escolhe trabalhar as tensões supracitadas uma vez que elas são estabelecidas. Desde o início, por exemplo, fala-se sobre uma suposta “onda de assaltos” no bairro (o que é citado, inclusive, no material de divulgação e nos releases do filme), mas essa construção jamais chega às vias de fato: nunca vemos assalto algum, e as únicas invasões de propriedade são operadas por Mika e, a partir de dado momento, por Rebeca. Entra aí uma outra problemática, à qual os cineastas não parecem ter se atentado: temos em cena uma criança branca e uma criança preta. Quando uma criança branca adentra as residências do bairro simplesmente porque pode, porque elas seriam “fáceis” de serem invadidas, isso é tratado como um traço de personalidade indomável, despojada e desafiadora ao status quo. Do lado de fora da sala de cinema, no entanto, sabemos muito bem que uma criança preta invadindo uma casa em um bairro de classe média seria tratado como caso de polícia. Quando Avenida Beira-Mar arquiteta um momento em que as amigas violam, juntas, uma casa e são surpreendidas com a chegada de seus moradores, não há qualquer menção, mesmo que subtextual, à diferença de trato no que tange a raça e que está em jogo quando se arma uma situação como essas. As duas escapam ilesas, e Florim & Paiva escolhem não mais promover novas incursões da dupla na invasão domiciliar (para ver uma produção brasileira recente que se debruça sobre essa temática com melhor desenvoltura, ver Sem Coração, de Tião e Nara Normande). Curiosamente, mesmo vivendo em meio a uma suposta onda de assaltos, Rebeca escolhe não avisar à mãe que sua própria casa encontra-se vulnerável a invasões. Temos uma obra que estabelece uma miríade de tensões, mas opta por focar em poucas, enquanto relega as demais a subtramas secundárias ou mesmo a um franco esquecimento.
Mesmo aquelas situações que efetivamente ocupam um primeiro plano acabam sendo tendo seu potencial lavado com o andar da carruagem. Falemos sobre a temática do abuso: existem duas sequências fortíssimas em que uma dupla de rapazes tenta violentar sexualmente as meninas, salientando a transfobia no trato com Mika. Se a repetição – que vem após um dos grandes momentos do longa, em que Mika faz algo como uma performance drag numa boate em ruínas, embalada por Gal Costa cantando Dê um rolê – deste motivo já parece ligeiramente duvidosa enquanto uma instrumentalização dessa violência para propósitos de fator-choque, mais pulgas se juntam atrás da orelha quando temos toda uma sequência dedicada a colocar Rebeca e um dos agressores numa sequência que chega a ser constrangedora quando tenta esboçar algo cômico. Vemos os dois sentados no sofá da casa dela; ele insistindo para ela ligar a televisão para que eles possam passar o tempo enquanto os adultos conversam lá fora; ela tendo que pedir desculpas por tê-lo machucado com um canivete que usara em autodefesa, enquanto Marta trata a situação a panos quentes com a mãe do jovem, com direito a um pedido de desculpas e um abraço entre agredida e agressor. Há um comentário sendo feito aí sobre culpabilização da vítima, mas é tudo orquestrado de maneira tão tonalmente esquisita que a abordagem do filme acaba tornando-se incômoda de um jeito inadequado ao tratar de um assunto mais delicado.
O que há de mais interessante no conjunto acaba sendo a relação de cumplicidade entre as duas adolescentes que vai gradualmente se desenvolvendo em algo mais, e a abordagem que os diretores escolhem para tratar a questão do gênero na infância e na adolescência — que acaba sendo, esse sim, o foco tonal de Avenida Beira-Mar. Estão aí a maior parte das sequências mais bem desenvolvidas, em que a tensão realmente é levada a situações-limites de forma por vezes brutal, por vezes sensível. Andrea Beltrão possui alguns bons momentos em um filme no qual sabe não ser a estrela principal. A dupla protagonista é um verdadeiro achado, tanto individualmente quanto na dinâmica que constroem juntas. Não é difícil se deixar levar pelo que elas entregam em cena, sobretudo em sequências tão tenras, como aquela na qual as duas brincam de nado em meio à piscina vazia na casa de Rebeca. Existem um ou dois momentos em que a casa é explorada de forma um pouco mais fora da caixa, e esse é um deles; Niterói é cheia de casas como esta, para a qual Marta e sua filha mudam-se e passam as noites folheando velhos álbuns de fotografias. Mas, novamente, Avenida Beira-Mar pouco se debruça em como isso pode se relacionar com as especificidades daquela cidade sem nome, na qual as adolescentes vivem em um bairro cuja titulação é igualmente ignorada e patinam, à tarde ou à noite, em um logradouro que só é batizado, mesmo, no cartaz que está do lado de fora da sala de cinema.
AVENIDA BEIRA-MAR, dir. Maju de Paiva e Bernardo Florim.
Sinopse: No inverno, a praia de Piratininga, em Niterói, fica deserta. Rebeca, de 13 anos, recém-mudada para lá, está de castigo e só consegue ver a rua por cima do muro. Um dia, ela avista Mika, uma menina trans, nadando no mar aberto. Esse momento marca o início de uma nova perspectiva para Rebeca.
Hoje nos cinemas.
Duração: 85 minutos. Assista ao trailer.
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