RECORTES CRITICA: Ainda Estou Aqui (2024)
Crítica do filme representante do Brasil no Oscar 2025, por Igor Nolasco.
🚨 O texto a seguir contém spoilers.
“Entre o antes e o agora, uma ruptura: 1964. Com a ruptura, o projeto ideológico e cultural anterior a 64 corre o risco de ficar ‘parado no ar’, sem sentido, jogado na ‘lata de lixo da história’. Assim como o presente corre o risco de não ter sentido se não se enraizar numa anterioridade significativa.”
Jean-Claude Bernardet, Vitória sobre a lata de lixo da história
Enquanto espectadores brasileiros, estamos muito acostumados aos signos visuais que simbolizam o Rio de Janeiro em nossas ficções — tanto as que são feitas por nós e para nós, quanto aquelas que visam exportar nossa imagem ao exterior. Quase sempre remetentes à augusta paisagem da zona sul da cidade, os símbolos sempre presentes costumam ser o Pão de Açúcar, o morro do Corcovado com seu Cristo de braços abertos, o movimento sinuoso das pedras portuguesas no calçadão de Copacabana. Dentro desse universo diegético, o Rio costuma ser o lar da boemia espirituosa sempre de copo na mão, da juventude bronzeada e sensual que despretensiosamente passa suas tardes jogando futevôlei na areia da praia e de uma malandragem com coração de ouro, eternamente vadia e de sorriso no rosto. Em meio a essa fabulação em que tudo é divino e maravilhoso, qualquer coisa pode acontecer, da comédia à tragédia. Quando Walter Salles — desde a década de 1990, um dos cineastas brasileiros em atividade com maior projeção no exterior — escolhe abrir um filme que sabidamente discorrerá sobre os aspectos mais sangrentos da ditadura militar (1964-1985) de seu país justamente com imagens desse Rio de Janeiro de cartão-postal, propõe-se também a, de certa forma, dilapidar esse ideal pictórico carioca/brasileiro (Rio = síntese do Brasil, para o estrangeiro) diante dos olhos de espectadores de todo o mundo. Não por acaso, da primeira vez em que vemos Fernanda Torres caracterizada como Eunice Paiva, ela emerge das águas na praia de Ipanema, o morro Dois Irmãos ao fundo, boiando distraidamente com o rosto apontado para o Sol — antes de ter seu momento relaxante de lazer abruptamente entrecortado quando um helicóptero cruza o céu, com sua presença sólida e barulhenta. Assim se dá o primeiro plano de Ainda estou aqui, que basicamente encapsula tudo o que virá a seguir: a paz de uma família que vive “em comercial de margarina” nesse Rio de Janeiro idílico sendo interrompida pela ação do aparato estatal civil-militar.
Ainda estou aqui é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, cuja vida é marcada por episódios nacionalmente conhecidos: ainda menino, teve seu pai, engenheiro e ex-deputado, sequestrado e assassinado pelos algozes da ditadura, tido como desaparecido e nunca reencontrado; tudo isso anos antes do acidente que lhe limitaria os movimentos do corpo e seria registrado no best-seller Feliz Ano Velho. Talvez seja importante salientar, aqui, que o que discorreremos acerca dos expedientes familiares a seguir diz respeito ao que é apresentado narrativamente na obra fílmica, e não necessariamente à história real que lhe inspirou.
O que vemos nos primeiros minutos da fita é uma família tentando levar a vida adiante em meio ao fechamento de cerco durante o alvorecer dos anos de chumbo da ditadura militar. Habitam um lar confortável, as estantes são abarrotadas de livros, os pais possuem vida social movimentada, as filhas mais velhas saem para namorar e ir ao cinema e os mais novos brincam na praia. Quase tudo na vida cotidiana familiar remete a um projeto de país, um projeto ideológico e cultural, anterior ao golpe de 1964: o núcleo que acompanhamos consegue, num primeiro momento, permanecer encastelado graças a um recorte de classe. Isso não chega a ser mencionado textualmente, ainda que ganhe tração em algumas marcas imagéticas e situacionais bastante claras. Podemos apontar, por exemplo, que boa parte da trilha sonora incidental de Ainda estou aqui é amparada em duas figuras míticas da música popular brasileira: em disco, a família ouve sobretudo Caetano Veloso (presença ostensiva em capas de LPs e pôsteres espalhados pelos quartos dos filhos; menções aos outros tropicalistas também pipocam em dados momentos, nas paredes, nos diálogos ou nas bandas sonoras), e no som do carro ou no radinho da empregada doméstica, o sempre presente cancioneiro romântico de Roberto Carlos — dentro de casa escuta-se a música popular brasileira politicamente engajada e abraçada pela intelectualidade progressista, enquanto mundo afora impera a música popular brasileira que de fato era unanimidade comercial. Podemos ir além, e constatar que o engenheiro está sempre de charuto na boca e uísque na mão; que todas as refeições da casa são preparadas pela empregada (que mora num quartinho ao fundo da residência dos Paiva); que a própria casa fica praticamente na areia da praia. Que a um cineasta nascido em berço de ouro como Walter Salles isso pareça natural é algo que entendemos, uma vez que sabemos de suas raízes. Sua abordagem, no entanto, pode ser vista como crítica se levarmos em conta que — como nos deixa claro já o plano de abertura supracitado, com seu helicóptero rasgando o céu de Ipanema — essa pretensa tranquilidade em que Rubens Paiva & família vivem vai sendo paulatinamente contaminada por intervenções da realidade concreta. As personagens tem seu cotidiano constantemente interrompido pelo quebra-pau que está rolando lá fora, e ameaça chegar neles a qualquer momento. Mal somos apresentados a Vera, filha mais velha da família Paiva que almeja estudar sociologia, e vemos ela e seus amigos sendo interceptados em uma blitz de trânsito e enquadrados na parede, sendo revistados por meganhas que procuram integrantes da luta armada. Os momentos de descontração dentro de casa são constantemente interrompidos quando o patriarca precisa ir ao telefone atender ligações secretas. O longa vai articulando a tensão com calma durante esses primeiros passos, enquanto sabemos que o castelo de cartas está prestes a desmoronar a qualquer momento. A segunda coisa que vemos em Ainda estou aqui — sendo a primeira, conforme já mencionado, o rosto de Eunice emergindo da água e vislumbrando o helicóptero à distância — é um cachorrinho abandonado na praia, prontamente adotado pelos Paiva após insistentes pedidos do filho Marcelo. Quando o animal de estimação é subitamente atropelado por um veículo suspeito, sendo morto (intencionalmente?) e enterrado no quintal da família, aquilo é também uma pontuação feita no enredo: a morte está rondando aquela casa, e o destino de Rubens Paiva está selado.
Os aficionados por Fernanda Torres, grande estrela do filme, talvez estranhem a presença algo apagada de sua personagem durante essas primeiras sequências do longa, anteriores à interceptação e sequestro de seu marido. Querendo ou não, é quando o patriarca vivido por Selton Mello sai de cena que ela realmente passa a ocupar um espaço maior. Isso não deixa de fazer sentido, de certa forma: se a trama de Ainda estou aqui repassa a história de uma família que tem sua vida irremediavelmente alterada e fragmentada pela morte do pai, essa narrativa centra-se na figura da mãe a partir do momento em que ela precisa se reinventar para assumir as rédeas de uma situação na qual foi deixada em total desamparo. De uma hora para outra, ela é transformada na baliza daquela residência; torna-se ativa e pragmática. Recorre a uma rede de apoio formada por amigos do casal, visita distritos policiais e militares tentando localizar seu marido (fazê-lo em meio à ditadura não era brincadeira), passa a reger o comportamento e a rotina dos filhos para garantir a segurança dos mesmos. A mudança da família para São Paulo é a queda da última carta do castelo no qual os Paiva se encontravam isolados: um adeus ao Rio de Janeiro idílico da boemia despreocupada, deixado para trás em prol de uma megalópole cinzenta e dura, sinônimo de trabalho, que já nos anos 1970 era conhecida como um local buscado por aqueles que almejavam recomeçar e granjeava para si, cada vez mais, a posição de cidade mais importante do país.
Novamente, a cisão pré/pós 1964: até a década de 60, o Rio de Janeiro — Distrito Federal — ainda desfrutava de uma reputação enquanto capital cultural do país; com a mudança da capital federal para Brasília sendo sucedida quase que imediatamente pela ruptura democrática, o Rio vai gradualmente entrando em decadência e perdendo importância para São Paulo (uma queda de braço que já ocorria, pelo menos, desde as primeiras décadas do século XX). A interrupção provocada pelo golpe também se reflete nesse reposicionamento geográfico dos Paiva. A casa, palco de tantas boas memórias, deixada vazia para trás, é também uma representação visual daquela vida interrompida, da ruptura causada pela ditadura. Não é por acaso que Salles escolhe fechar o longa com as cartelas dos créditos finais sendo sobrepostas a tomadas dos cômodos esvaziados.
Não é apenas a cidade que muda: a família precisa enfrentar, talvez pela primeira vez, mudanças concretas em sua realidade também no que é relativo a classe. Nota-se o estranhamento de uma das filhas, ainda antes da ida a São Paulo, ao descer para tomar café e descobrir que a empregada doméstica não trabalha mais ali; com o dinheiro retido no banco e o pai desaparecido, Eunice pragmaticamente pagara os salários atrasados e a dispensara. Os imóveis da família são vendidos não apenas para viabilizar a mudança, mas também para se conseguir alguma receita de forma imediata. Transformada em matriarca da noite pro dia, Eunice impõe a ida para a capital paulista também para resumir os estudos, retornando à universidade que abandonara em sua juventude e formando-se em direito. Antes mulher da alta sociedade, agora é uma cidadã ativa que passa a advogar pela causa indígena e pela preservação do território amazônico.
Quando Ainda estou aqui dá um salto temporal de vinte anos e nos mostra essa Eunice, mais velha e com os filhos crescidos, em plena atividade profissional, somos trazidos a uma realidade bem diferente daquela do Rio cor-de-rosa sendo tingido de cinza pelos anos de chumbo. A própria direção de Salles muda de tom. É quando o filme se direciona a essa reta final que ele, como um todo, parece perder um tanto sua força: após passarmos um bom quinhão de sua minutagem acompanhando o drama de Eunice e sua família no início dos anos setenta, quando o enredo encaminha-se para um desfecho somos sobressaltados por dois flash-forwards quase que seguidos, em uma finalização um tanto quanto apressada para um filme que dedicou boa parte de sua duração a explorar, com tanto esmero, a história dos Paiva à época do desaparecimento do pai. Isso acaba por subtrair do filme o processo de desenvolvimento de Eunice em meio a essa reinvenção. A deixamos enquanto uma mãe de família fragilizada durante a ditadura para, segundos depois, a encontrarmos como uma advogada estabelecida e centrada num país redemocratizado, em um segmento cuja inserção diegética parece se justificar em dois objetivos: o primeiro sendo contextualizar a história enquanto um episódio na vida do escritor Marcelo Rubens Paiva (há toda uma sequência dedicada a falar sobre Feliz Ano Velho que parece um tanto quanto deslocada em meio ao filme), e o segundo e principal sendo pontuar que, com a redemocratização, a família finalmente conseguira um atestado de óbito para Rubens e o reconhecimento de que ele fora morto pelas mãos do Estado. Econômico nesse(s) final(is) do longa, Salles já corta para a última sequência, com mais um salto de vinte anos. Em meio a todas essas elipses, o espectador é como que privado de assistir, em primeira mão, a protagonista da fita catando os cacos e reconstruindo sua vida. O epílogo dura pouquíssimos minutos e agrega ao longa a presença de Fernanda Montenegro (como uma Eunice idosa, em uma participação rápida que, temática e narrativamente, evoca seu papel em Vida Invisível, de Karim Aïnouz). Estabelece temáticas como o envelhecimento e a perda da memória causada pela doença de Alzheimer, mas o faz de forma um tanto quanto en passant. No fim, acaba que Ainda estou aqui é um filme sobre como Eunice lutou pela memória de Rubens e reestruturou sua família em meio à ditadura, muito mais do que um filme sobre a história de vida de Eunice como um todo. O recorte não é, a princípio, um problema, mas definitivamente deixa lacunas que talvez pudessem ser preenchidas de maneira proveitosa.
Entre explorar dicotomias de classe, expor do que havia de pior na ditadura e relembrar um de seus episódios mais infames (afinal, o assassinato de Rubens Paiva foi amplamente coberto pela imprensa da época e se tornou emblemático, como o próprio longa faz questão de lembrar), Walter Salles escolhe costurar um pouco de tudo em uma obra que, visualmente, dá continuidade a um estilo que já estava bem estabelecido desde Central do Brasil: prevalecem as cores quentes e a textura na (hoje extraordinária) película 35 mm; lampejos de memórias familiares são representados em segmentos que mimetizam as filmagens caseiras por meio do Super 8 e nas inserções de fotografias que replicam os registros feitos pelos Paiva (a fotografia já era um elemento importante, lembremos, na primeira colaboração entre o diretor e Fernanda Montenegro).
Talvez o que haja de mais forte, em termos narrativos e visuais, em Ainda estou aqui seja o segmento dedicado a retratar a prisão da própria Eunice. É um dos momentos em que Salles melhor articula a construção de um envolvimento emocional entre público e trama, recriando os horrores dos porões da ditadura de forma sóbria, porém regida a pulso firme. A sensação de deslocamento ao não se ter noção da passagem do tempo e da luz exterior, a desorientação pela falta de informações sobre os seus e o mundo lá fora, o desespero que vai gradualmente se transformando em catatonia, a desorientação diante dos incessantes interrogatórios; tudo isso é transposto à tela de forma eficiente e palpável, que chega a lembrar “Narciso em férias”, capítulo mais memorável de Verdade Tropical, livro de memórias de Caetano Veloso — aquele, que é tão importante para o universo musical do filme.
Por falar na trilha sonora incidental, é no mínimo sintomático que uma única canção seja repetida duas vezes: na primeira, é utilizada como pano de fundo para filmagens Super-8 de momentos de descontração do Paiva; na segunda, embala os créditos finais enquanto vemos os cômodos vazios da casa que estes tiveram que abandonar. É preciso dar um jeito, meu amigo foi lançada por Erasmo Carlos em seu célebre disco Carlos, Erasmo…, de 1971: álbum que marca o redirecionamento de um integrante da Jovem Guarda, associado ao Roberto Carlos que aqui se faz tão presente, a uma sonoridade mais próxima da chamada “MPB”, da qual o igualmente presente Caetano Veloso é um dos papas. Ao tomar É preciso dar um jeito, meu amigo quase que como uma música-tema, Ainda estou aqui assume-se, conscientemente ou não, como um filme sobre guinadas: sobre a situação social de suas personagens sendo abruptamente mudada, sobre o contexto político do país deixando uma chaga eterna em suas vidas, sobre a mudança de uma cidade para outra e, principalmente, sobre uma mulher que precisa recalcular sua vida para tomar as rédeas de seu clã após uma tragédia.
Que tenhamos deixado de fora desse texto discussões sobre temáticas tão insólitas quanto “Brasil no Oscar”, amplamente exploradas por todo tipo de extrato da imprensa, dos blogs e das discussões nas redes sociais, não é por acaso. Ainda estou aqui oferece material para reflexão suficientemente rico para que não precisemos tratar desse tipo de assunto superficial, que trata filmes meramente como objetos que podem agregar ao país o tão sonhado reconhecimento diante da indústria norte-americana; uma coisa submissa, que Nelson Rodrigues definiria como complexo de vira-latas. Discussões sobre cinema brasileiro jamais deveriam ser balizadas por tais parâmetros — sobretudo quando os filmes propriamente ditos dão tanto pano pra manga.
AINDA ESTOU AQUI, dir. Walter Salles.
Sinopse: No início da década de 1970, no Rio de Janeiro, a família Paiva - Rubens, Eunice e seus cinco filhos - vive à beira da praia em uma casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens Paiva é levado por militares à paisana e desaparece. Eunice - cuja busca pela verdade sobre o destino de seu marido se estenderia por décadas - é obrigada a se reinventar e traçar um novo futuro para si e seus filhos.
Data de lançamento: 7 de novembro.
Duração: 103 minutos. Assista ao trailer.
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