RECORTES CRITICA: A Festa de Léo (2024)
Crítica do primeiro longa-metragem do coletivo Nós do Morro, por Igor Nolasco.
“À medida que se aproxima o ‘momento decisivo’, cresce o desejo de ‘resolver de um todo’ aquele negócio. Já cansou bastante a cabeça desde que saiu da cama. O dinheiro no bolso, desde agora, é o descanso, que ele bem merece, pra o resto do dia.
Cinco, dez, quinze minutos mais e se acaba essa preocupação torturante. Ele tem experimentado muitas vezes essa mudança brusca de sensações [...]. Está num momento desses. O dinheiro [...] vai trazer-lhe uma enorme ‘descompressão’. Solucionará tudo, porque — é o seu feitio ou o seu mal — ele faz (desta vez, como de outras) deste negócio — o ponto único, exclusivo, o tudo concentrado da sua vida. [...] O mundo recomeçará, novo, diferente.”
Dyonélio Machado, Os Ratos (1935)
Quando o psicanalista gaúcho Dyonélio Machado publicou, há quase noventa anos, seu seminal romance Os Ratos, o Brasil era outro, mas alguns problemas permanecem os mesmos de lá pra cá. Na narrativa, um funcionário público de baixo escalão, pai de uma família humilde, tem 24 horas para arranjar uma quantia considerável de dinheiro para pagar a despesa atrasada e acumulada do leiteiro – profissional que, naquele tempo, ainda circulava pelas cidades para entregar as garrafas de casa em casa. Caso falhe em cumprir o prazo, seu lar – onde a manteiga já não entra, por restrições orçamentárias – não será mais atendido pelo leiteiro (que é enfático e irredutível), para desespero de seu filho pequeno, recém recuperado de uma doença que quase lhe tirou a vida. Recebendo uma humilhante negativa ao pedir um adiantamento a seu patrão, o homem sai perambulando pelas ruas de Porto Alegre assim que larga o expediente, se desdobrando para tentar reunir o montante necessário, atormentado pela extinção iminente do prazo estipulado e pelo peso acachapante que cairia sobre sua cabeça em caso de fracasso.
Nove décadas depois, um problema narrativo estruturalmente similar serve como espinha dorsal para um filme carioca recém-lançado: no dia do aniversário de seu filho, uma mulher descobre que o pai do menino, dependente químico e endividado, está jurado de morte pelos donos do morro, que lhe deram até o fim do dia para pagar o que deve. Desesperada, ela corre pelas ruas e becos do Vidigal fazendo o possível e o impossível para levantar o dinheiro que tirará o pescoço do homem da degola. O paralelo com o romance de Dyonélio Machado pode até não ser uma jogada intencional dos diretores Gustavo Melo e Luciana Bezerra, mas nos faz pensar como, passados quase cem anos, a sina dos mais pobres nesse país segue sendo a do aperto e da urgência: de ter que abaixar a cabeça, pedir emprestado, recorrer aos seus e aos outros, arranjar bicos e recorrer a expedientes por vezes escusos, pois os prazos são (e permanecem) inabaláveis. Parceria entre a Globo Filmes e o Nós do Morro – trupe e organização social originária do Vidigal, que ao longo dos últimos trinta e tantos anos vem trabalhando com teatro e cinema na comunidade e formando diversos atores e cineastas que ganham projeção para o restante do país – A Festa de Leo chega agora ao circuito comercial, após circular por festivais como o Festival do Rio, a Mostra de São Paulo e a Mostra de Tiradentes.
Apesar de ser um nítido produto da supracitada conjunção de fatores, é com algum alívio que o espectador pode constatar, passada a logo do conglomerado de mídia nas cartelas iniciais, que A Festa de Leo é muito mais Nós do Morro do que Globo Filmes. Não está aqui o humor simplório associado aos “núcleos pobres” das telenovelas (e tantas vezes importado para o cinema humorístico dos últimos vinte e poucos anos) e muito menos a cosmética da fome1 publicitária dos favela movies2 que se tornaram praticamente um subgênero cinematográfico à parte no Brasil e no mundo. Logo após a primeira tomada, uma noturna que sobe o morro capturando as luzes da favela, todos os dissabores e eventuais momentos de respiro do menino Leo e seus pais, Rita e Dudu, são registrados com um olhar tenro, mas algo austero, que reflete parte dos dramas que dão o tom do novíssimo cinema brasileiro.
Enquanto Rita faz de tudo um pouco para ir juntando o dinheiro, subimos e descemos o morro trombando com personagens dotadas de certa tridimensionalidade: seria fácil caracterizá-los como o pai ausente e adicto, a comadre destemperada e falastrona, o patrão cego às dificuldades vividas por sua funcionária e o filho que tenta tocar o barco de sua infância à revelia de sua situação familiar, mas os diretores Melo & Bezerra fazem um esforço em dar, a cada um deles, momentos para que expressem conflito e vida interior. Nesse sentido, brilha o elenco de peso reunido: Cíntia Rosa, Mary Sheila e Jonathan Haagensen (num verdadeiro retorno à forma, demonstrando que ainda tem lenha pra queimar em papéis expressivos para cinema) compõem uma espécie de trio principal do “núcleo adulto”, para além do menino Nego Ney, músico/fenômeno da internet/ator mirim que aqui vive o personagem titular, após estrear no cinema brasileiro com um papel menor em Nosso Sonho (2023). Fazendo pequenas pontas, nomes como Neusa Borges, Babu Santana, Thiago Martins, Juan Paiva e Roberta Rodrigues, compondo um conjunto que, se sobressai-se pelos nomes e rostos conhecidos, o faz por serem alguns desses supracitados egressos do Nós no Morro. A Festa de Leo, sob esse prisma, é quase que uma superprodução do grupo, com reunião de tantos nomes que fizeram e fazem parte da história do grupo.
Ainda que, no decorrer de sua trama, acabe seguindo uma narrativa até certo ponto previsível, A Festa de Leo é um filme tenro sobre infâncias difíceis e sobre emancipação feminina, na figura de Rita, verdadeira protagonista do longa. Em um país onde historicamente, por tantas vezes, o cineasta subia o morro buscando retratá-lo com um olhar de fora para dentro (do Cinema Novo à pós-retomada, etc), é um filme de favela feito pela favela. Quanto mais filmes assim tivermos por aqui, mais interessante e múltipla nossa cinematografia será.
A FESTA DE LÉO (2024), dir. Gustavo Melo e Luciana Bezerra [trailer].
Sinopse: Léo fará 12 anos. No dia de sua festa, Rita, sua mãe, descobre que o pai do menino, Dudu, que é dependente químico, roubou o dinheiro do evento. Rita busca formas de viabilizar condições financeiras para salvar a vida do pai de seu filho e a resposta está em sua rede de amigas e familiares.
Duração: 85 minutos.
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Termo cunhado por Ivan Bentes em 2001, em texto para o Jornal do Brasil, visando posicionar o cinema comercial brasileiro da retomada - fortemente calcado em uma estética publicitária - em oposição à "eztetyka da fome" (1965) crua e politizada de Glauber Rocha.
“Filmes de favela”, em tradução literal do inglês. Termo utilizado para designar o substancial número de produções comerciais brasileiras dos anos 1990 e 2000 que visavam retratar o cotidiano e sobretudo a violência nas favelas brasileiras. (Cidade de Deus, Tropa de Elite, Cidade dos Homens, etc)