🎏 cobertura de festivais
o 74º festival de berlim
Tem rolado pelas últimas semanas a 74ª edição do Festival de Cinema de Berlim, e por mais que me interesse profundamente falar sobre a nova colaboração do diretor Hong Sang-soo com a atriz Isabelle Huppert, ou até mesmo sobre o novo filme da cineasta brasileira Juliana Rojas, hoje eu quero falar sobre outra coisa.
Apesar da tradicional cobertura do festival na mídia brasileira, eu tenho visto muito pouco (ou, simplesmente, nada) em torno do recente boicote organizado contra o Festival de Berlim. Para dar contexto: algumas semanas atrás, um grupo de cineastas e portais de cinema anunciaram sua abstenção no Festival deste ano após a direção da Berlinale ter convidado políticos de um partido alemão de extrema-direita para a festa de abertura do evento. No caso, essa foi a gota d’água de uma situação muito maior.
Tudo começou alguns meses atrás, na noite de abertura do Festival Internacional de Documentário de Amsterdã (IDFA). Na ocasião, um grupo de trabalhadores do meio audiovisual subiu ao palco do festival segurando uma faixa com os dizeres "Do rio ao mar, a Palestina será livre", um slogan político popular em defesa do povo palestino frente ao crescente massacre contra Gaza. Em resposta ao ocorrido, a organização da IDFA publicou uma declaração pedindo desculpas aos visitantes que possam ter se sentido ofendidos pelo "slogan ofensivo". Em tréplica, o Instituto de Cinema Palestino (PFI), entre outros cineastas participantes do festival, anunciaram sua saída do IDFA:
"Como o maior festival de documentário do mundo, a IDFA tem a responsabilidade de responder à situação dos jornalistas e documentaristas em Gaza, à comunidade cinematográfica palestina e às vidas dos palestinos. Ao contrário de seu objetivo declarado de promover filmes que inspirem o pensamento crítico e a melhoria da sociedade, as ações da IDFA estão aquém do esperado."
A ocasião do boicote contra a IDFA acabou servindo como propulsor para a criação da iniciativa Strike Germany, uma organização alemã de artistas e trabalhadores do meio cultural que incentiva o boicote de instituições alemãs sob o intuito de pressioná-las a emitir um apelo por um cessar-fogo no conflito palestino. Entre as instituições, está o Festival Internacional de Cinema de Berlim.
Embora a organização da Berlinale tenha “desconvidado” os políticos após a recepção negativa, a falta de iniciativa do festival para assumir qualquer tipo de posição ou debate acerca da Palestina (fora um espaço pacato, quase que alheio ao festival) ficou ainda mais evidente. Essa abstenção surpreende devido ao histórico político recente da organização. Ano passado, por exemplo, foi declarada solidariedade à Ucrânia a partir da suspensão de delegações do Estado Russo. Na edição deste ano, um protesto claro contra a decisão do governo iraniano de proibir a ida dos cineastas Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha. Um clamor por “imparcialidade” vinda do festival chega a ser desonesta. Decepcionante, até.
Num artigo publicado para a revista de cinema alemã Fantômas, a crítica Öykü Sofuoğlu pontuou perfeitamente a importância política desses espaços:
Até que ponto os festivais de cinema podem criar um espaço concreto para a discussão, o debate e, o mais importante, emoções, como tristeza, raiva ou desespero em tempos de guerra (genocídio)? Como profissionais do cinema, até que ponto podemos esperar que eles demonstrem engajamento político por meio de decisões e ações diretas e concretas? E se nossas expectativas não forem atendidas, temos o poder de promover alguma mudança estrutural?
Acho que o primeiro passo para discutir essas questões seria focar na linguagem – a linguagem das declarações oficiais, em que valores e conceitos abstratos como "diálogo pacífico" ou "empatia, conscientização, compreensão" são usados em abundância, sem fornecer exemplos que deveriam ser concretos, visíveis e impactantes. A idealização de valores e missões resulta em nada além de hipocrisia e promessas vazias.
[…] Minha intenção ao dar esse exemplo não é comparar guerras nem crimes desumanos, mas simplesmente denunciar a desonestidade da Berlinale: Se quisesse, a Berlinale poderia muito bem assumir uma posição.
📝 ensaios e entrevistas
entrevistas da semana
🤔 o que assistir nesse final de semana?
novocine (gratuito): Lourenço Crespo & Gonçalo Lamas
A plataforma de streaming NOVOCINE disponibilizou uma sessão dupla com a temática de “vigilância”, conectando os filmes de dois diretores portugueses.
Mapa (2022), de Lourenço Crespo: Um casal observa dois amigos a caminho de uma festa. Duração: 10 minutos.
Granary Squares (2021), de Gonçalo Lamas: Ancorado ao centro do recém-renovado distrito de King's Cross, Londres, o filme toma o ponto de vista de uma possível câmara de vigilância para traçar os fluxos de uma praça com aspeto público mas gestão privada. Duração: 64 minutos.
Disponíveis até começo de março (08/03).
🍿 links de interesse
🇧🇷 A revista de cinema britânica BFI convidou o crítico Filipe Furtado para compartilhar uma lista de 10 filmes essenciais do cinema brasileiro [lista].
🇫🇷 Após 16 anos de preparo, a "versão Apollo" de sete horas de duração do épico mudo Napoléon (1927), de Abel Gance, foi restaurada pela Cinémathèque Française. A nova versão restaurada do filme finalmente será exibida ainda este ano [artigo].
👤 Para a New Yorker, a escritora Becca Rothfeld escreveu um excelente ensaio intitulado “All Good Sex is Body Horror”, sobre as transformações do corpo humano, usando como ponto de partida o cinema do diretor David Cronenberg [ensaio].
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Fico contente ao ler, hoje, na coluna Recortes, sobre a importância da arte no cotidiano e na situação global. A solidariedade não pode ser unilateral. Ela deve ser abrangente e estender-se a toda a humanidade.